
MENU

“É dignidade você ser chamado da maneira como gostaria, como você se enxerga. Você poder se expressar sem que te coloquem em formatações. Essa documentação para mim é sobre plenitude, dignidade e acolhimento”.
As frases acima, um misto de desabafo e agradecimento, são de Salu Salustiano Silva, 29 anos, artista cênico e docente em Uberaba. Sem se identificar com o gênero masculino ou feminino desde criança, Salu precisou recorrer à Justiça para ter o direito de retificar na certidão de nascimento o nome, e de incluir o termo “não binário” no campo “sexo” do documento. A nova certidão foi emitida há menos de um mês.
“Desde cedo me sentia muito deslocado. Parecia que eu não me identificava com o grupo dos meninos e eu também não me via 100% nos grupos das meninas. Em alguns momentos, eu me sentia mais pertencente a um grupo e em outros momentos eu me sentia mais pertencente ao outro”, contou.
Desde criança, Salu Salustiano não se identifica com o gênero masculino ou feminino. — Foto: Cláudio Senra/Divulgação
Para explicar o termo não binário é preciso antes definir duas outras expressões: identidade de gênero e expressão de gênero.
De acordo com o Manual de Comunicação LGBTI+, do Grupo Dignidade – organização da sociedade civil sem fins lucrativos fundada em 1992 – Identidade de gênero é a percepção que uma pessoa tem de si, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento. Já a Expressão de gênero é como a pessoa manifesta publicamente a sua identidade de gênero, por meio do nome, da vestimenta, do corte de cabelo e dos comportamentos.
Dessa forma, assim como Salu, pessoas que se identificam como não binárias, é porque não se percebem como pertencentes a um gênero exclusivamente, ou seja, a sua identidade de gênero e a expressão de gênero não são limitadas ao masculino e feminino.
Desde 2018, o Provimento nº 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) permite que a retificação de prenome e de gênero seja feita diretamente nos cartórios. Porém, esse artigo é muito específico para as pessoas transexuais, segundo a advogada Juliana Cuba, responsável pelo processo judicial de Salu.
“O provimento não fala nada sobre as pessoas não binárias. E aí, acaba que essas pessoas não têm uma resolução que permita a elas irem ao cartório diretamente e fazer essa alteração. Vários cartórios falam que esse provimento é só para as pessoas trans, há outros que colocam [no campo sexo] “agênero” ou “não especificado”. Então, muitas pessoas não binárias precisam entrar com uma ação judicial pedindo que, por determinação, ela possa retificar o nome e o gênero”, explicou ao g1.
Juliana Cuba também ressaltou que a ação movida por pessoas não binárias é muito recente no Brasil, por isso, quanto mais pessoas ajuízam e ingressam com uma ação – que tramitará em segredo de Justiça – para retificar o nome e o gênero, mais decisões a favor estarão disponíveis no sistema judicial brasileiro. “Com muitas decisões a favor, eu espero futuramente, que tenhamos alguma norma, que regule, da mesma forma que regula a alteração de prenome e gênero de pessoas transexuais, que tenha também para pessoas não binárias, principalmente de forma administrativa, sem precisar ingressar de forma judicial”, disse.
Juliana Cuba, advogada de Salu no processo de retificação do nome e gênero na certidão de nascimento. — Foto: Pamella Rosa e Oliveira/Divulgação
O número de indivíduos que não se identificam com as definições pré-estabelecidas de gêneros masculino e feminino, ou se situa entre elas, é estimado em 1,19% da população brasileira, cerca de 2,5 milhões de pessoas. O número foi calculado em um estudo pioneiro na América Latina que mapeou adultos transgêneros e não binários no Brasil, realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista, e divulgado em novembro de 2021.
Salu, desde criança faz parte deste grupo, e na década de 1990 o termo “não binário” ainda não fazia parte do cotidiano dele e tampouco a questão de gênero tinha espaço além da binariedade masculino-feminino. A falta de políticas públicas de educação sexual e a não abordagem do assunto nos meios de comunicação ou ambiente escolar deixava Salu com muitas indagações e nenhuma resposta.
“A minha relação com a não binariedade é muito antiga. Eu e ninguém do meu convívio tínhamos esse vocabulário e esse conhecimento. Eu passei a infância e adolescência sabendo que eu não era uma pessoa 100% em conformidade com o meu gênero, só que eu não tinha um vocabulário para isso”, recordou.
A falta de esclarecimento e de referências geraram angústia e dias confusos na infância e adolescência de Salu. — Foto: Arquivo Pessoal
A falta de esclarecimento sobre o que sentia e a pressão para se “encaixar” em um padrão social, que enxergava e ainda enxerga a heterocissexualidade como norma, geraram angústia e dias confusos na infância e adolescência de Salu.
“Crescemos em uma sociedade com uma formatação que empurra a gente a se definir e que nos incentiva a se comportar tal como se espera que gênero x ou gênero y vá se comportar, e no meu caso, como biologicamente eu sou do sexo masculino, essa expectativa de gênero me incomodava muito“.
Diante de tanta pressão e na busca por acolhimento, amor e respeito, mesmo indo contra a sua natureza Salu tentava viver uma “perfomance da masculinidade”, mas, como não conseguia, se frustrava.
“Hoje quando eu vejo alguns vídeos meus dando entrevista, algum registro que eu tenha, eu percebo o quanto que isso era desconfortável”.
“Eu vejo que eu buscava, por exemplo nos meus textos, não retratar o gênero”. — Foto: Arthur Artutune/Divulgação
Para aliviar tanto desconforto, falta de compreensão, solidão e julgamento, Salu passou a se abrigar na arte e fazia das suas criações o mundo onde conseguia, mesmo que por alguns momentos, viver sem qualquer julgamento.
“Na época eu não percebia, mas olhando hoje, para trás, eu vejo que eu buscava, por exemplo nos meus textos, não retratar o gênero. Era uma pessoa ali, que qualquer pessoa que lesse poderia se identificar, porque eu gostava de retratar situações em que o gênero não fizesse diferença”, relembrou.
Salu conseguiu foi entender o que se passava em sua vida apenas na fase adulta. Consumidor de conteúdos voltados para a comunidade LGBTQIAP+, como documentários e realities de drag queens, foi nestes programas que ele teve o primeiro contato com pessoas não binárias.
“Comecei a ver algumas pessoas que se identificam como não binárias, algumas personagens não binárias e foi como um soco no meu estômago, eu pensei: nossa, ta aí a história da minha vida, tudo o que eu passei, tudo o que eu vivi e eu não conseguia formular, não conseguia formatar”.
“Quando caiu essa ficha eu vi que não tinha outra alternativa a não ser tentar correr atrás dos meus direitos”.
A identificação com a não binariedade e a possibilidade real e libertadora de poder viver sem encaixes e de forma livre, seguindo a rota da sua natureza, foi o ponto alto para Salu não mais se permitir interpretar papéis na vida real, agora, viver personagens seria apenas a sua profissão, em cima do palco.
“O meu nome de registro, o meu primeiro nome que me incomodava, mas eu engolia, começou a ficar bastante desconfortável de ouvir. Aí eu comecei a pesquisar o caso de pessoas que foram atrás dessa retificação.”
Salu conta que sempre gostou do sobrenome “Salustiano” e, como, existe a variação “Salustiana”, a abreviação “Salu” oferecia para ele maiores possibilidades para se expressar.
“Eu comecei a usar Salu como nome artístico justamente por acreditar na neutralidade do nome. Quando abracei a não binariedade, depois de conversar com pessoas próximas e, principalmente com a Juliana, decidi levar esse nome adiante. Ainda soa ambíguo para mim, de certa forma “Salu, Salustiano”, mas eu gosto e não quis abrir mão nem do prenome, nem do sobrenome. Sinto conexão”, disse.
Salu conseguiu foi entender o que se passava em sua vida apenas na fase adulta. — Foto: Arquivo Pessoal
Desde a busca por uma advogada até a decisão judicial ser finalizada e a nova certidão ser entregue a Salu foram em torno de 3 meses. “Para as pessoas que vão em busca desse registro, esse início [do processo] não é fácil, é bastante burocrático, mas é recompensador porque quando eu recebi a mensagem da Juliana falando que a juíza tinha deferido o processo eu chorei muito”, lembrou.
“Hoje para mim, conseguir essa retificação de nome e de gênero representa muito, porque, eu vou olhar para a minha identidade e vou me reconhecer ali. Eu vou abrir o aplicativo do meu banco e vou me reconhecer com o nome ao qual de fato eu me identifico. Eu quero ser chamado no atendimento, seja hospitalar ou em alguma loja, eu quero ser chamado pelo nome com o qual eu me identifico”, finalizou Salu.
A pedido do g1, a advogada Juliana Cuba preparou um roteiro para as pessoas não binárias que desejam solicitar a retificação de nome e/ou gênero na certidão de nascimento. Veja:
1.Entrar em contato com o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais de sua cidade e verificar se eles aplicam o Provimento nº 73 do CNJ, por analogia, às pessoas não binárias.
2.Se o cartório aplicar, levar tais documentos:
I – certidão de nascimento atualizada;
II – certidão de casamento atualizada, se for o caso;
III – cópia do registro geral de identidade (RG);
IV – cópia da identificação civil nacional (ICN), se for o caso;
V – cópia do passaporte brasileiro, se for o caso;
VI – cópia do cadastro de pessoa física (CPF);
VII – cópia do título de eleitor;
IX – cópia de carteira de identidade social, se for o caso;
X – comprovante de endereço;
XI – certidão do distribuidor cível do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);
XII – certidão do distribuidor criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);
XIII – certidão de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);
XIV – certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos;
XV – certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos;
XVI – certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos;
XVII – certidão da Justiça Militar, se for o caso.
Importante lembrar que alguns cartórios não aceitam a gratuidade/hipossuficiência financeira e o procedimento, bem como algumas certidões, são pagas.
3.Caso o Cartório não reconheça a aplicação do Provimento às pessoas não binárias (o que tem acontecido com frequência), deve-se procurar um advogado para que possa ser ajuizada a “Ação de Retificação de Prenome e Gênero de Pessoa Não Binária”;
4.Caso a pessoa não tenha condições financeiras, poderá ir a Defensoria Pública de sua cidade.
A advogada Juliana Cuba ainda ressaltou que o Provimento nº 73 do CNJ dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero e que essa não se confunde com a não binariedade.